Pedro Coutinho/OlharDireto
Cuiabá/MT
A idosa Wilma Therezinha Destro Fernandes, de 87 anos, que é parte na disputa judicial por terras envolvendo o advogado assassinado Renato Nery foi ouvida pelo delegado que comanda a Operação Office Crime, deflagrada para investigar a execução ocorrida em julho do ano passado, e negou que tenha conhecido Nery. “Pelo amor de Deus, não sei nada do homem que morreu. Não é a mim que você vai perguntar, porque eu nunca fui lá naquela fazenda para conhece-lo”, disse Wilma.
Olhar Jurídico entrevistou o espólio de Manoel Cruz Fernandes, esposo de Wilma, e advogado Antônio João de Carvalho Júnior que os defende na causa, que envolve longa disputa por terras travada contra o advogados Renato Nery e Luiz Salesse, há 40 anos. A área de milhares hectares em Novo São Joaquim é avaliada na casa das centenas de milhões de reais. Nery foi assassinado a tiros em 2024 enquanto chegava em seu escritório, em Cuiabá. Antes da execução, Nery acusou o advogado João Antônio de usar artimanhas em favor de Wilma para tomar as áreas, que ele alegava serem dele e Salesse.
O caso, que se arrasta há mais de 40 anos, tem como protagonistas Wilma Therezinha Destro Fernandes, que veio à Cuiabá para a entrevista, e seu falecido marido, Manuel Cruz Fernandes, os quais lutam para recuperar as áreas que, supostamente, foram tomadas de forma irregular. Se por um lado eles acusam os advogados Nery e Salesse de artimanhas jurídicas para permanecerem na posse sobre a área, a dupla, por sua vez, acusa a família de Wilma de fazer o mesmo.
Dona Wilma já tem quase 90 anos. A defesa dela alega que Nery a tratava como uma “velha”, “viúva” e em “estado senil”. Ao lado de dois filhos seus, frutos do casamento com Manoel, a idosa afirmou que nunca conheceu Renato e que jamais assinou qualquer procuração em nome de Manoel para lhe conceder as terras em questão.
Ela e os filhos ainda afirmam que Salesse e Nery falsificaram assinaturas para obterem a posse das terras. Segundo eles, fraudaram rúbricas em três contratos de cessão de terras, que foram usados para justificar a posse das áreas, acrescentando ainda irregularidades nos documentos, como o fato de um contrato supostamente assinado em 2001 ter tido a firma reconhecida apenas em 2007.
Segundo o advogado João Antônio, na condição de fiéis depositários das terras, Salesse e Nery passaram a agir como se fossem os proprietários, vendendo e arrendando partes da área sem prestar contas à família, o que não poderia acontecer.
“Pessoas ganharam dinheiro em cima da nossa terra, que foi comprada e paga pelo nosso pai. Pessoas ficaram bilionárias com essas terras”, afirmou um dos filhos.
Após o assassinato de Renato Nery, em julho de 2024, Salesse teria passado a reivindicar uma participação maior nas terras, alterando a divisão previamente acordada entre as partes.
“Agora está havendo uma discussão de participação de percentuais entre o espólio de Renato Nery e Luiz Carlos Salesse. Porque a participação deles era 68% para Renato e 32% para Salesse. Agora, na morte do Renato, o Salesse disse no processo que a participação dele é de 52% e do Renato 47%”, explicou João.
Em 2022, após semanas de negociações, as partes chegaram a um acordo que garantia a Wilma 3.705 hectares. No entanto, os valores do arrendamento das terras continuam bloqueados judicialmente, deixando a família em uma situação financeira precária.
“Nossa parte pega no emocional, o sentimento é de perda, de traição. Há 40 anos atras meu pai tinha muito dinheiro, e ele morreu, infelizmente, sem nada. Então foi, nesse tempo todo, muito sofrimento da minha mãe”, disse Manoel filho.
“Mas pessoas ganharam dinheiro em cima da nossa terra, que foi comprada e paga pelo nosso pai. Pessoas ficaram bilionárias com essas terras. E eles pensam que são os donos e, nós, os invasores. Minha mãe nunca assinou nada, nunca veio aqui em Mato Grosso e nunca teve contato com nenhum desses caras”, completou.
Existe ainda um boletim de ocorrência registrado por dona Wilma, lá em São Paulo, em que ela e sua família afirma que "capangas" de Nery e Salesse foram até sua casa para ameaça-la.
À polícia, eles narraram que três homens disseram que estavam na cidade de Sertãzinho em nome de Nery e de Salesse para comprar a área rural de propriedade da comunicante na cidade de Novo São Joaquim.
“Pelo que lhes fora respondido que nada teria a vender para Renato Nery e Luiz Carlos Salesse, e que a situação referente a área rural será resolvida na justiça, e que eles deveriam procurar o seu advogado na cidade de Cuiabá/MT. Em tom ríspido os homens disseram que a comunicante iria entregar suas terras por bem ou por mal, e que próxima vez que eles fossem até a sua residência "a conversa seria diferente"’, diz trecho do boletim.
A família completou que clama por Justiça e que somente pretende usufruir das áreas que lhe pertencem. Rogam que o acordo firmado entre as partes seja cumprido.
Disputa por terras
A história remonta a 1982, quando Wilma e Manuel Cruz adquiriram 12.703 hectares de terra no município de Novo San Joaquim. Pouco depois, a advogada Maria Selma Valois ingressou com uma ação de reintegração de posse, alegando que 5.300 hectares da área pertenciam a ela.
A disputa judicial se arrastou por anos, com decisões que, segundo João Antônio, foram marcadas por equívocos e manipulações. Em 1989, uma sentença estendeu os 5.300 hectares para o lado direito do córrego Cabeceira Alta, legalizando, na prática, uma invasão de terras.
Ele explicou que o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em 1993, determinou que apenas os 5.300 hectares deveriam ser devolvidos a Maria Selma, enquanto o restante deveria retornar a Wilma e Manuel Cruz. No entanto, a execução da decisão foi marcada por entraves burocráticos e supostas manobras.
João Antônio assumiu a defesa de Wilma em 2019 e, desde então, tem denunciado supostas irregularidades cometidas por Renato Nery e Luiz Carlos Salesse, que atuaram como fiéis depositários da área de 7.413 hectares. Segundo ele, os dois venderam e arrendaram partes das terras sem prestar contas à Wilma. “Eles se beneficiaram de direitos que não eram deles. Fizeram apropriação indébita do patrimônio que pertence a Wilma e ao espólio de Manuel Cruz”, afirmou o advogado.
Um dos pontos mais polêmicos da disputa é a alegação de que Renato Nery e Salesse falsificaram assinaturas em contratos de cessão de terras. Uma perícia realizada pela Politec concluiu que as assinaturas de Manuel Cruz nos documentos eram falsas.
O Ministério Público chegou a manifestar-se pela declaração de falsidade, mas o processo foi arquivado após uma decisão do então corregedor Juvenal, que alegou falta de interesse da parte requerente. Essa ordem é questionada por Antônio.
O advogado também criticou a atuação do Judiciário no caso, acusando magistrados de fechar os olhos para as irregularidades cometidas por Renato Nery e Salesse. “Eles começaram a tratar Wilma como uma oportunista, enquanto os outros agiam como donos das terras. Isso não faz sentido”, disse.
João Antônio prometeu acionar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para garantir que a família seja ressarcida. Enquanto isso, Wilma aguarda uma solução definitiva para um caso que já dura mais de quatro décadas. “É uma disputa que envolve não apenas terra e dinheiro, mas também a dignidade de uma família que foi lesada de forma sistemática”, concluiu o advogado.
Representação de Nery contra João
Exatos 10 dias antes de ser assassinado a tiros em Cuiabá, o advogado Renato Nery havia pedido para a OAB-MT que investigasse a conduta dos advogados Antônio João de Carvalho Júnior e Gaylussac Dantas de Araujo. Nery acusa Antônio de chefiar um “escritório do crime” que, por meio de manobras processuais, atuaria fraudando disputa de terras em Mato Grosso para “tomar” as propriedades.
No dia 26 de junho de 2024, Nery protocolou a reclamação ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-MT: “Há um verdadeiro formigueiro humano preparado para usurpar direito do Representante [Renato Nery] receber seus honorários duramente obtidos no longo processo de reintegração de posse”, escreveu o advogado.
No documento, Nery acusou o advogado Antônio João de Carvalho Júnior de supostamente ser proprietário de um escritório do crime. Renato sugeria que Antônio João Carvalho Júnior seria líder de esquema no Judiciário mato-grossense para apropriação indevida de propriedades, incluindo um caso que ele advogou, o qual resultou, como pagamento de honorários, no recebimento de milhares de hectares de terras, sobretudo no caso das áreas em Novo São Joaquim.
A história, segundo Nery, remonta ao início dos anos 1980, quando Maria Selma Valoes entrou com uma ação de reintegração de posse contra Manoel Cruz Fernandes, pleiteando 5.300 hectares de terra em Barra do Garças. Em uma decisão controversa, desembargador Sebastião de Moraes Filho concedeu à autora 12.413 hectares, mais que o dobro do solicitado, uma decisão posteriormente revertida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 1992.
Desde então, o cumprimento da decisão do STJ, a qual ordenou que o excedente das terras fosse devolvido à Nery, tem sido dificultado, segundo a reclamação, por manobras judiciais de Antônio, classificadas por Renato como “chicanas”. Ele relembrou ainda o assassinato do seu colega de profissão, Roberto Zampieri, executado a tiros sete meses antes, em 5 de dezembro de 2023, também envolvido em disputa de terras e, coincidentemente, ou não, também com relação junto ao desembargador Sebastião de Moraes.
Em 8 de julho, Antônio João de Carvalho Júnior afirmou ao jornalista Arthur Santos da Silva que não sabia da existência da citada representação até publicações na imprensa. Ou seja, o jurista relata ter tomado conhecimento das acusações por parte de Renato apenas após o assassinato do colega.
“Eu não tenho conhecimento do nome das pessoas que ele me associa. Mas eu posso afirmar que todas as alegações feitas pelo Renato Nery são levianas, destituídas de fundamento, porque eu atuei de forma técnica no processo. Jamais me vali de ajuda ou interferência de terceiras pessoas ou que qualquer magistrado tenha atuado de forma parcial em processos. Na realidade, nós atuamos de forma técnica e demonstramos que os contratos que Renato juntou nos autos são contratos nulos em que houve uma falsificação deliberada. Nada mais que isso”, comentou.
PJC investiga
Após o assassinato, a Polícia Civil passou a investigar se a representação disciplinar feita por Nery influenciou o crime. Nery denunciava um suposto “escritório do crime”, citando advogados, magistrados e outros envolvidos em disputas judiciais por terras em Mato Grosso.
Em fevereiro de 2025, uma nova fase da Operação Office Crime cumpriu buscas no escritório JB Advocacia, em Cuiabá, e apreendeu celulares para aprofundar as investigações.
Em março, já com uma linha possivelmente diferente de investigação, quatro militares e um caseiro foram presos, acusados da execução de Nery, mas o mandante e a motivação exata ainda não foram descobertos. As buscas foram realizadas em uma chácara usada pelos suspeitos e no Batalhão ROTAM, em Cuiabá. Além da apreensão da arma utilizada no crime, a polícia identificou a rota de fuga do executor e localizou a motocicleta usada no assassinato.
Outro lado
Luiz Carlos Salesse rebateu por meio de nota as acusações feitas por Wilma e alegou que todos os esclarecimentos necessários já foram feitos às autoridades competentes.
A defesa de Luiz Carlos Salesse, de acordo com o que já foi discutido no âmbito judicial, nega as declarações feitas por Wilma Therezinha ao site Olhar Direto, relacionadas ao caso envolvendo seu então advogado, Renato Gomes Nery. Todos os esclarecimentos necessários sobre as falsas acusações feitas por Wilma já foram devidamente prestados às autoridades competentes, seja no âmbito jurídico ou policial. Com uma trajetória profissional e de vida ilibada, Luiz nunca agiu de forma antiética ou com o objetivo de se beneficiar do que não é seu por direito. Reforçamos que, desde o trágico acontecimento que ceifou a vida de seu também amigo, Luiz seguiu colaborando com as investigações e não se opôs em nenhum momento a agir de boa-fé em busca de justiça. Repudiamos, ainda, o uso de informações processuais retiradas de contexto de forma deliberada, com o objetivo de tentar imputar um ato de ilegalidade. Por fim, enfatizamos que nenhuma acusação sem provas será tolerada, em respeito não só à memória de Renato, como também à integridade de Luiz. Cuiabá, 11 de março de 2025