G1
Utilizada para fins terapêuticos, mas estigmatizada por conta de seu uso recreativo, a maconha já conta com um novo status e começa a ser cultivada em escala industrial no Brasil. Um exemplo disso é a fábrica da associação Aliança Medicinal, a primeira "fazenda urbana" de cannabis do país, localizada em Olinda.
Segundo a instituição criada em 2020, a unidade funciona desde março de 2023, quando a associação obteve autorização da Justiça para cultivar a erva e produzir remédios à base de maconha.
As medicações consistem num óleo extraído das flores da planta fêmea da cannabis que são usados no tratamento de doenças como depressão, epilepsia e Parkinson. Os produtos terapêuticos não geram os efeitos psicoativos da droga.
A "fazenda" funciona dentro de um galpão numa área de mil metros quadrados, no bairro da Vila Popular, em Olinda, no Grande Recife. No local, as mudas são cultivadas e mantidas em dez contêineres a temperaturas que variam de 22 a 30 graus até o momento em que o extrato da flor é retirado para a produção do óleo (confira abaixo o processo de fabricação).
"A gente desenvolveu um módulo produtivo, automatizado, em que a gente consegue simular as estações do ano e dar a melhor condição de que a planta precisa para desenvolver as substâncias necessárias para fazer o medicamento", explicou o diretor-executivo da Aliança Medicinal e engenheiro agrônomo Ricardo Hazin Asfora.
O local produz em torno de 2 mil frascos de 30 mililitros por mês, a um custo médio que vai de R$ 150 a R$ 500. Os valores correspondem ao preço dos produtos distribuídos pela entidade, que hoje tem cerca de 9 mil associados em todos os estados do país.
Além do produto, os usuários pagam pelo frete, que custa a partir de R$ 10 para o Grande Recife, R$ 45 para outros estados do Nordeste e R$ 70 para as demais regiões.
Processo de fabricação
Todo o processo de produção do óleo de maconha medicinal dura entre quatro e cinco meses, cumprindo as seguintes etapas:
- Os produtores cortam talos de uma erva específica, chamada de "planta-mãe", que é clonada para garantir que todos os óleos distribuídos sejam padronizados, compartilhando o mesmo material genético;
- Os talos da "planta-mãe" são colocados num vaso dentro de uma pequena estufa, chamada de "berçário" ou "incubadora", onde a umidade do ar é controlada até que os talos comecem a criar raízes e crescer, transformando-se em mudas;
- Depois de aproximadamente 25 dias, as mudas são guardadas em estufas dentro de outros contêineres, onde são submetidas a condições de temperatura que simulam a transição da primavera para o verão, período em que elas florescem;
- As mudas levam três meses para crescer e criar flores, que contêm glândulas chamadas de "tricomas", onde estão os fitocanabinoides, que são as substâncias de propriedades terapêuticas, como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabidiol (THC);
- Os tricomas produzem um líquido espesso e colante, que tem um cheiro forte;
- As flores são retiradas e levadas até um laboratório para a extração do sumo com o líquido produzido pelos tricomas;
- Em cada contêiner, são cultivadas cerca de 230 plantas, que produzem em torno de 1 kg de sumo, chamado de Insumo Farmacêutico Ativo Vegetal (IFAV);
- Antes da produção do óleo, o material é encaminhado a um laboratório terceirizado, que analisa o IFAV para avaliar as substâncias presentes nele;
- Após a análise, que dura em média 20 dias, o insumo é diluído em azeite extravirgem em concentrações que variam de 1,5% a 10%, gerando o óleo de cannabis medicinal;
- As outras partes da planta que não foram aproveitadas para a produção do óleo são levadas para descarte.
Atualmente, existem quatro tipos de óleo: um só de CBD, com 10% de concentração; e outros três, com concentrações de 1,5%, 3% e 6%, que podem ser de CBD, só de THC ou mistos. Eles são usados para os mais diversos sintomas, de crises convulsivas a ansiedade.
"As pessoas falam muito sobre canabidiol, mas canabidiol não é sinônimo de cannabis. Canabidiol é um dos componentes presentes na planta. [...] Quando a gente começa a entender sobre as propriedades dos fitocanabinoides, a gente consegue atuar naquela sintomatologia do diagnóstico específico daquele paciente", informou a médica Rafaela Espósito.
Segundo a especialista, a dosagem indicada também varia em cada paciente, dependendo de fatores como alimentação, sono, sedentarismo e estresse.
"É muito particular cada caso. Então, posso prescrever para um paciente com fibromialgia, por exemplo. E a dosagem que prescrevo para ele pode ser completamente diferente de outro paciente, por exemplo, também com fibromialgia, com a mesma idade, com aparentemente a mesma sintomatologia", explicou a médica, durante visita à fazenda urbana de cannabis.
Foto: Artur Ferraz
Talos de cannabis são colocados num 'berçário' para clonagem de mudas que serão usadas para produção do óleo de maconha medicinal.
Regulamentação e expansão
A expectativa é que a produção da Aliança Medicinal cresça à medida que a distribuição da cannabis terapêutica for regulamentada. Recentemente, tanto a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), quanto a Câmara de Vereadores do Recife aprovaram leis que garantem o fornecimento dos remédios no Sistema Único de Saúde (SUS).
"Estamos em processo de expansão para atingir a capacidade de 36 contêineres. A gente já vem se preparando para um aumento mais abrupto, de acordo com o desenrolar dessa lei de acesso pelo SUS. [...] Primeiro, a gente tem a aprovação da lei e a sanção pelo governo. Após essa etapa, a gente tem que chegar ao processo de regulamentação", disse Ricardo Hazin.
A partir da regulamentação, com o aumento da demanda, espera-se que o preço do óleo de cannabis se torne cada vez mais acessível. "Tendo um volume grande, a gente conseguindo chegar em níveis de investimento significativos e estabilizar esse nível de investimento, a gente pode trabalhar apenas com o custo de produção", explicou o diretor-executivo.
Para o engenheiro agrônomo, um uso mais disseminado da maconha para fins terapêuticos pode representar uma economia em relação aos gastos com atendimento em saúde.
"O custo de um tratamento desses [com cannabis medicinal], que é em média de R$ 200 ou R$ 300 por mês, se você comparar com um internamento ou atendimento de emergência de uma pessoa, vê o quanto vai conseguir viabilizar o sistema de saúde. É sobre isso que a gente está falando. Quanto mais a gente conseguir trabalhar em larga escala esse tipo de tratamento, a gente vai ter uma economia significativa no orçamento da saúde", afirmou Ricardo Hazin Asfora.
Foto: Artur Ferraz
Insumo Farmacêutico Ativo Vegetal (IFAV) é o extrato da flor de maconha usado para produção do óleo de cannabis medicinal